A Mulher na História da Arte - Parte 01
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Pouco se sabe sobre as mulheres que viveram antes do século XVIII devido, também, a escassez de documentos escritos, tamanha a irrelevância que era dado ao sexo feminino. O pouco que se sabe, está nos diários, comum às mulheres preservarem como confidentes. Durante o Renascimento, o Homem passou a ser o centro de todas as questões e a participação feminina era frequente - e exclusiva, salvo algumas exceções - como modelo de artistas homens que marcaram a história como gênios. Para a mulher artista, destinaram temas que conformassem sua existência: naturezas mortas, retratos e buquês de flores. As obras de arte a partir do Renascimento, em sua maioria, foram produzidas sobre o olhar masculino e conversam particularmente com o espectador também masculino. Griselda Pollock levantou questões importantíssimas nos anos 70 para o re-conhecimento da mulher na sociedade: quem sou eu quando observo algo?, como essa observação interfere diretamente na construção da representação da mulher e como as obras de arte atestam mudanças graduais do pensamento e acontecimentos sociais.
Griselda Pollock nos anos 80
A produção artística da mulher na História da Arte necessita de reavaliação contínua. São inúmeras obras até hoje sem autoria oficial - ou produzidas por mulheres e assinadas por homens; isso reflete o lugar oculto que foi designado as mulheres por uma sociedade ditada por, em sua maioria, homens brancos, héteros e de privilegiada posição social. Woolf (2014) abeira-se de hipóteses de como poderia ter sido o mundo para a mulher se os acontecimentos tivessem invertido, se a mulher tivesse tomado as rédeas de sua própria vida, tamanha urgência que é repensar o lugar que a mulher ocupou durante toda a História. Segundo Woolf, a inferioridade a qual se construiu das mulheres sobre os homens, e aqui tratando do ideal de feminilidade apresentado através das obras de arte "serve para explicar como eles ficam incomodados com as críticas delas; como é impossível para elas dizerem que tal livro é ruim, tal quadro é medíocre, ou o que quer que seja, sem inflingir muito mais tormento e despertar muito mais raiva do que um homem teria causado ao fazer a mesma crítica. Pois se ela resolver falar a verdade, a figura refletida no espelho encolherá; sua disposição para a vida diminuirá."
Para ajudar a responder a pergunta de Griselda Pollock, precisamos aumentar nosso conhecimento sobre as conquistas das mulheres quanto sobre a história da arte em geral. É necessário compreender a importante relação entre o feminino e a cultura visual para, não apagar a história até então escrita, mas ressignifica-la e re-interpreta-la através de uma perspectiva feminista contemporânea.
As distorções imagéticas de feminilidade praticadas a partir do Renascimento, através do resgate da arte greco-romana, têm sido arduamente desconstruídas através do debate feminista.
É apenas quando começamos a pensar sobre as implicações da pergunta “por que não existiram grandes artistas mulheres?” que começamos a perceber a extensão da nossa consciência de como as coisas são no mudo foi condicionada - e frequentemente enganada - pela maneira como as questões mais importantes são formuladas. (NOCHLIN, 2016)
Linda Nochlin (2016) partiu do re-conhecimento da ausência feminina entre os chamados artistas gênios dos séculos XV a XIX, com objetivo de causar uma reflexão necessária a respeito de um mundo no qual a igualdade nas conquistas não seja apenas possível, mas ativamente promovida pelas instituições sociais. Quanto mais fontes borbulharem facilmente a respeito do assunto, mais acessível e acelerada será essa mudança de representatividade e reconhecimento.
Linda Nochlin
ARTE, UM AMBIENTE EMINENTEMENTE MASCULINO
Comecemos pelo começo: o nascimento de uma mulher. Se esperava, com muita ansiedade, o homem, o menino para carregar o sobrenome da família. Logo que nascia, facilmente se sabia quando se tratava de uma mulher. Nos campos de antigamente, os sinos soavam por menos tempo para o batismo de uma menina, como também soavam menos para o enterro de uma mulher (PERROT, 2006). Isso quando se tinha a sorte de sobreviver às condições de partos naturais e cesáreas da época, com pouco auxílio, humanização e, menos ainda, higiene. A taxa de mortalidade das mulheres era, ao que parece, superior à dos homens na Idade Média e na Época Moderna, por conta da alta mortalidade nos partos. A maternidade era devastadora, ainda mais que, em caso de dificuldades, se preferia salvar a criança antes da mãe: assim aconteceu nas primeiras cesarianas, praticadas na Itália. No século XIX, a tuberculose atingiu gravemente as mulheres, principalmente as mulheres do povo, subnutridas crônicas. A longevidade feminina é um fato recente, ligado aos progressos da obstetrícia e da ginecologia, ao melhor regime alimentar das mulheres, que ao médico mais vezes e são mais sóbrias. (…) E tal constatação sugere a que ponto essa longevidade não é um fato de natureza, mas de cultura e de comportamento. (PERROT, 2006, p. 42)
Não havia escolhas ao sexo feminino a não ser estudar os bons costumes, casar, engravidar, cuidar da casa e do marido. Não existia espaço para sonhos, para habilidades, para dons. Era quase impossível uma vida fora dos limites domésticos.
As mulheres deixaram poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra. (PERROT, 2006, p. 17)
Sabe-se hoje que muitas artistas mulheres casadas - quando oficialmente - e que trabalhavam no ateliê do marido, entregavam as obras para o homem assinar, já que a elas era negado qualquer tipo de visibilidade. Essa prática era recorrente e suportada principalmente pelos conjugues. Foi o caso de Camille Claudel (1864-1943), um dos nomes femininos mais conhecidos e citados na História da Arte, não tanto pelo seu poder enquanto escultora, mas pelos escândalos com o seu segundo tutor, posteriormente amante, Rodin.
Camille Claudel
Guerrilla Girls, por meio de cartazes publicados entre 1989 e 2017, apontou que neste ano apenas 6% das obras exibidas no MASP eram de mulheres, mas 60% dos nus pintados eram femininos. As musas. Elas que deram sentido a palavra museu, que vem do grego mouseion: “templo ou morada das musas, ou seja, um local de inspiração divina e de onde provinham aquelas que estimulavam a criatividade dos artistas e intelectuais”. O museu - assim como as musas - é também fruto da diferenciação sexual, um espaço para abrigar curiosidades, artefatos, obras, pinturas adquiridas por homens: eles que viajavam e tinham acesso a diversidade cultural, eles que também administravam os bens familiares - até certo momento da nossa História, era proibido a mulher ter independência financeira. Nem dinheiro, tampouco um espaço somente delas para praticar o que quer que fosse.
Passada a infância, a moça era preparada para o casamento. Até os setes anos, a diferença entre menino e menina era mínima: brincavam juntos, tinham atividades compartilhadas, aprendiam quase que as mesmas coisas. De meia infância em diante, a menina era criada para cuidar da casa, enquanto o menino era treinado para 'exercer seu dom' - de dentro para fora, o homem foi criado para o externo, a mulher para o interno. Tudo o que se passava debaixo de um teto, no âmbito doméstico, era destinado aos cuidados da mulher. Mas, segundo Virginia Woolf (2016, p. 54), "a vida para ambos os sexos (…) é árdua, difícil, uma luta perpétua. Requer coragem e força gigantescas. Mais que qualquer coisa, talvez, criaturas da ilusão como somos, ela requer confiança em si mesmo. Sem autoconfiança, somos como bebês no berço. E de que modo podemos adquirir essa qualidade imponderável, que também é tão inestimável, o mais rápido possível? Pensando que as outras pessoas são inferiores. Sentindo que temos uma superioridade inata - pode ser riqueza, status, um nariz perfeito ou o retrato de um avô feito por Romney; os artifícios da imaginação humana não têm fim - sobre os outros. Por isso a enorme importância para o patriarcado de ter de conquistar, ter de governar, de achar que um grande número de pessoas, metade da raça humana, na verdade, é por natureza inferior. Deve ser realmente uma das principais fontes do seu poder. (…) As mulheres têm servido há séculos como espelhos, como poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho real."
Essa assimetria histórica - uma diferença social, econômica e subjetiva entre ser mulher e ser homem, determinou o quê e como homens e mulheres pintaram ao longo dos séculos. O simples fato de ter nascido mulher, encaminhou as mãos femininas para a pintura de gênero: tudo o que representava a vida cotidiana, doméstica, do mundo e do espaço de trabalho da mulher, era acessível a elas. Muitas mulheres tiveram algum sucesso na pintura de gênero e conseguiram, de certa forma, se expressar através de naturezas mortas. Clara Peeters, pintora flamenga (século XVI-XVII), foi uma das artistas que impediu que outros assinassem suas obras e realizou autorretratos em miniatura nos reflexos de objetos que compunham suas naturezas-mortas.
De forma sutil, Peeters deixou sua marca nas telas: através das letras iniciais do seu nome em forma de alimento, tal como o biscoito em forma de P, ou impressas em objetos dispostos no interior das suas composições picturais.
As mulheres, até o século XIX, não eram oficialmente admitidas nos Ateliês - destino de qualquer aspirante a pintor. As chamadas “altas pinturas” (cenas de batalhas ou religiosas) eram privilégios dos homens: pela necessidade de se ter um amplo espaço que abrigasse telas de grandes proporções - o motivo de um ateliê adequado, o qual às mulheres era vetado. Também por isso, a pintura de gênero era o que cabia a mulher: não era necessário vasto espaço, menos ainda telas grandes. Era “perfeito" para acontecer em ambiente doméstico.
Poucas artistas tiveram "a sorte" de nascer filhas de pintores bem-sucedidos, o que lhes facilitava enormemente o aprendizado. Artemísia Gentileschi é um nome conhecido do barroco italiano. Era filha do pintor Orazio Gentileschi e teve forte reputação não apenas pelo seu talento proeminente, mas por pintar como um homem. Artemísia foi esquecida e ignorada por séculos, porque sendo mulher caiu sobre ela o silêncio de uma historia da arte toda masculina. Assim como com Clara Peeters, parte da história de Gentileschi foi desvendada por meio de suas obras. Aos 18 anos, Artemísia foi vítima de estupro, cometido por outro pintor, então amigo de seu pai. Guardou em segredo o crime por mais de um ano e, quando tornou público, sofreu com a opiniões, que voltaram-se contra ela. Suas obras são, em sua maioria, autorretratos, que apontam seu drama pessoal como temática principal.
A passagem bíblica onde a viúva Judite, com ajuda de uma serva, corta a cabeça do general que a havia assediado, foi pintada inúmeras vezes a partir do Renascimento e era considerada uma alegoria do triunfo feminino sobre os homens. Caravaggio, principal nome do barroco italiano, pintou em 1599 e mostra primor na composição e alto teor de realismo e violência na cena. Artemísia, caravaggista, pintou a passagem em 1612 dando novos contornos a cena, abordando com um certo desejo de vingança pela agressão sofrida.
Judite Mata Holofernes - Caravaggio (1599). Pintura a óleo, 144 cm x 195 cm. Galeria Nacional de Arte Antiga - Roma. Fonte: Wikipedia
Judite Mata Holofernes - Artemísia Gentileschi (1612-1613). Óleo sobre tela, 158.8 cm x 125.5 cm. Museu Capodimonte - Nápoles. Fonte: Wikipedia
As obras das mulheres, principalmente a partir do Renascimento, são testemunhas subjetivas do que elas viveram. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. Era a garantia de uma cidade tranquila. Eco (2004, p. 206) afirma que o Renascimento foi uma espécie de triunfo da mente masculina sobre a mulher. Para os renascentistas, voltados a Antiguidade Clássica, nada mais lógico que se inspirar também na democracia ateniense, que não definia a mulher como cidadã. As mulheres acabaram praticamente excluídas de participar do Renascimento como sujeito ativo e criador, para assim serem lembradas como objeto da perfeição masculina na arte e nas ciências. //