[dis] face - onde está a sua máscara?
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Ensaio desenvolvido para a disciplina de Processos Teóricos e Históricos em Artes Visuais, no mestrado em Artes Visuais, por Jucinaldo Herculano Pereira e Emanuelle Cristina Rigoni. Ator-performer: Rafael Ângelo/Agatha Blublam, fotografias por Manu Rigoni.
A máscara é simbólica. Ela pode representar um povo ou uma cultura, mas também pode ser símbolo de uma manifestação artística ou determinar poder, como os grandes heróis das revistas em quadrinhos. Atualmente a palavra “máscara” é sinônimo de proteção contra o Covid-19. Do ponto de vista epistemológico, a palavra máscara possui vários significados. Na Itália, mashera, a pessoa com máscara, disfarçada. No Latim, masca, significa demônio, feitiçaria, bruxaria. Na Arábia, mashara, evidencia o bufão e seus personagens ridículos. Desde os rituais primitivos, a máscara é um recurso concreto, “calçado” no rosto, ocultando a verdadeira face de quem a usa. Dessa forma, “o mascarado tem permissão para ser um outro”. (HOUAISS, 2002). No dia 11 de julho de 2021, produzimos um ensaio fotográfico com o ator Rafael Angelo, que interpreta a Drag Queen Ágatha Blublam. O ensaio traz uma abordagem sobre o universo da Drag e a representação do corpo ancorado no uso das máscaras teatrais e busca através de um olhar poético, registrado através das objetivas, compreender o fenômeno na manifestação do corpo performático.
Para quem assiste, a ação da máscara no corpo ocorre uma transformação, a magia de ser um uma outra pessoa diferente daquele que calçou ou vestiu a máscara.
Entre as diversas possibilidades de transformação, as máscaras sempre estiveram presentes nas mais variadas culturas, sendo usadas como recurso por contadores de histórias, grupos teatrais e até nas manifestações da cultura popular brasileira. Mas a nossa discussão gira em torno da revelação/ocultamento que a máscara proporciona ao usuário. A máscara não serve apenas para ocultar, mas para revelar algo que o corpo deseja e não pode falar sozinho. Por isso a pergunta que intitula esse ensaio gira em torno do lugar onde você está, ou seja, onde está a sua máscara?
A MÁSCARA QUE REVELA
Ana Maria Amaral abre um dos capítulos do livro Teatro de Animação com a pergunta: “Porque a máscara está sempre associada ao teatro, aos ritos, à magia?” (AMARAL, 2007 p. 63). Acredita-se que os homens pré-históricos utilizavam de recursos teatrais para seus rituais ou suas celebrações, e para isso, em muitas festividades usavam a máscara como necessidade de sair de si, de se revelar outra pessoa, de se disfarçar. Essas experiências os transformavam em deuses e animais.
A máscara revela algo maior do que aparenta, ela “é uma transferência de energia. Tem sentido de mutação” (AMARAL, 2007 p. 64). Mesmo com a separação das máscaras com os rituais, elas continuam representando conceitos, ideias e recriando personagens que permeiam os grandes grupos teatrais do mundo inteiro e do Brasil como é o caso do grupo Moitará (RJ) e do Centro de Pesquisa da Máscara (SP). No processo de criação de espetáculos ou personagens o uso da máscara tem gerado reflexões sobre esse objeto primitivo que interfere na personalidade de quem a usa.
Para Jacques Lecoq (2010), o uso da máscara neutra “é o começo da viagem” para descobrir as diversas possibilidades corporais na preparação do ator.
A máscara neutra é um objeto particular. É um rosto, dito neutro, em equilíbrio, que propõe a sensação física da calma. Esse objeto colocado no resto deve servir para que se sinta o estado de neutralidade que precede a ação, um estado de receptividade ao que nos cerca, sem conflito interior. (LECOQ, 2010, p. 69).
O uso da máscara neutra revela a presença do ator no espaço em cena, ela desenvolve os diversos sentidos do corpo como o olhar, o sentir e o tocar. A máscara neutra revela o corpo do ator em sua maior intensidade. Dessa forma, Ana Maria Amaral reforça o princípio da máscara teatral: ela deve está viva. Por isso, “a máscara em cena deve dar sinais de vida, seja pela respiração, pela concentração de seu olhar ou por seus movimentos.” (AMARAL, 2004, p. 48).
O ator, ao usar a máscara neutra ou outro tipo de máscara, experimenta exercícios que estimulem o Estado-racional que é “perceber, deduzir, manifestar'' (AMARAL, 2004, p. 50). O corpo do ator ao receber os estímulos, irá descobrir do que se trata, ou seja, vai identificar e revelar sua identidade ou personalidade através de suas reações físicas.
Seja a máscara neutra, larvárias, expressivas, as Dell’Arts ou qualquer outra, elas têm sempre a função de estender, potencializar, alongar ou amplificar o corpo do ator revelando o poder da máscara em transformar o usuário em outra pessoa ou se fazer perceber pelo público, um outro ser, revelando uma nova identidade, uma nova personagem.
A MÁSCARA QUE OCULTA
O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo: sete atos, sete idades. (Como gostais, Shakespeare)
Uma máscara tem muitas faces: ao mesmo tempo em que garante o ocultamento, ela também persuade para que fiquemos em um espaço confortável, só nosso, criando uma representação para fora. Estamos cem por cento do tempo atuando para o externo e em torno das expectativas que o outro constrói sobre nós: precisamos ser jovens o suficiente, ter o peso ideal, acompanhar os ditames da moda, o padrão heteronormativo, as expectativas do pós-patriarcado. Por trás do palco, quando estamos sós, olhamos para o espelho e conversamos francamente com o que vemos, escolhemos a aparência que desejamos ter e quem desejamos ser, ao invés de acatar ao que as forças sociais impõem. A outra face, aquela que sobe ao palco, funciona como armadura - ou como cárcere.
Mas será que, mesmo inseridos em ambientes íntimos a nós, não estamos usando máscaras? Quando não respondemos as expectações de uma sociedade, provamos do sentimento de desprezo e repulsa. Sociedade essa que, desde muito cedo, desloca uma criança de "bebê" para "menina" ou para "menino" e, nessa nomeação, a menina é "feminilizada" por essa denominação que a introduz no terreno da linguagem e do parentesco por meio da interpretação de gênero. (BUTLER, 2020, p. 25). Na descrição da travestilidade teatral masculina, Drag significa “Vestido Semelhante a uma Menina”, ou “Vestido como Menina”, o que vai de encontro a todos os ideais e padrões construídos por uma sociedade. E o que destoa - ou se destaca - incomoda, é rejeitado. Ser um homem, vestir-se como menina e “fazer coisas de menina”, abala estruturas e causa vaias.
Precocemente, aprendemos a diferença entre os sexos e o valor que cada um tem na construção social, bem como o lugar que cada um ocupará para manter o mundo movimentando sem ruídos. Ouvimos frases como "homem não chora" e "isso não é coisa de menina" frequentemente e, inconscientemente, usamos essa máscara. Escolhemos roupas que harmonizem com o papel do espetáculo, vocabulários que afaguem a plateia e gestos que quadram com o nosso gênero. Sair do script é embrenhar uma esfera desconhecida, de negação e repúdio. E para confirmar a selvageria que se dirige aos desertores, o grupo dominante faz questão de não considerar parte (ou material) quem se opõe ao sistema, quem tira e rasga a máscara em pleno espetáculo. Como escreveu Simone de Beauvoir "se lhe ouvíssemos a voz, seríamos obrigados a reconhecer que é uma voz humana".
Esse sentimento de exclusão e discordância o qual evitamos, que nos obriga a escolher máscaras para viver em grupo, gira em torno, também, do benefício de instituições que lucram com o aumento das inseguranças e mudanças comportamentais de tempos em tempos. Sempre que a transformação de quem está por trás da máscara ressurge, as forças motoras da sociedade convulsionam e recriam ideais, frustrando e mutilando o curso da vida de todos. A partir da revolução industrial, a sociedade de consumo substituiu a consciência infeliz por uma consciência feliz e reprova qualquer sentimento de culpa (BEAUVOIR, 2018), fazendo com que lidemos com a necessidade de usar máscaras adentrando nosso território íntimo, para provar que somos úteis e cada vez mais capazes para nós mesmos.
Somos nós os mais interessados em nos libertar das pressões sociais e optar por utilizar a máscara como metamorfose e não como defesa de nós mesmos. O nós que é construído pelo outro; ele quem escreve nosso lugar, levando pouco em conta a idiossincrasia individual. A atitude natural será sempre de recusa ao que questiona, enfrenta, modifica. Aquele que desconstrói ainda é definido pela fraqueza e hediondez, não pela bravura. E, diferente da exibição maçante dos indistintos, que seguem os códigos e são numerosos, profetizou Shakespeare "a pequena tolice dos sábios dá um belo espetáculo!".